Mapas de Espelho – Para que não inventassem que dizia

para que não inventassem que dizia

 

Revoltou-se na ferida devolvida no confundir do lençol, com o arrojo da indiferença lançou-se
na arena: alucinava;
Seduzida na sua fúria rompia vermelha viva a carne, oxidado simula em cada ímpeto a afectação
a opaca razão arremessada na contracção do corpo e lastima a secreta ânsia do seu proveito.
Na ébria desidratação alucina sob um aplauso ultrajado,
só, para que não inventassem, a convulsão do tempo, que dizia.

 

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Mapas de Espelho – Nada se disse – como quase nada

nada se disse – como quase nada

 

Arrojou-se até ao umbral – nada se disse – arranjou os olhos, preparou-os, incutiu-lhes a apetência,
o apetite, a aparência – nada se disse – olhou para o umbral: apartou-se do coração, saiu do alcance
do umbral e foi, por aí, pela terra alcatroada – disse para os olhos: turistas, turistas nesta noite; sai, sai – como quase nada –
abriu todo o corpo: os olhos, a terra alcatroada –  nada se disse – voltou para dentro dos passos, empalideceu; alternou
dentro dos olhos as presenças arranjadas: dispo-las, supôs a festa abeirando-se – nada se disse – alvoraçado no
dilaceramento olhou: agora o tolhimento até aos ossos,
suspendeu os olhos – como quase nada – sabia a boca rasgada
e rasgaria uma a uma as faces: “qual delas queres” “vá despacha-te” “o coração que trago – trago-o num só trago todas as
noites – é sempre o mesmo” ” não, não me perco – os olhos – esses atravessam
os ribeiros a galope; os lagos são para olhar através dos olhos dos outros: criam-se e querem-se no lodo”
” vá tolhe a face” – nada se disse – encastrou-se ao corpo, enroscou-se, viu o coração acabado, fez saltar os olhos – como
quase nada – mostrou os dentes, agora, postiços, eram um enfeite, noite, noite,
 – nada se disse – o umbral ( pensou),
regressou com os olhos embrulhados, a terra alcatroada, turistas, turistas, noite, esse poço
dentro do corpo ­­– como quase nada – tropeçou nos olhos, o roseiral,
pétala a pétala viu tudo:
o corpo seco, a casaca de rosas – nada se disse –
vestiu-se desse corpo como o de uma pétala, encarquilhou os olhos nele, ( pensou) umbral – nada se disse – obscurecido o
coração – como quase nada – desconfiou dele.

 

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Mapas de Espelho – É preciso dizê-lo

é preciso dizê-lo

 

Uma vez mais a rua abria-se, a cor, essa, condescendia no volteio, durante os olhos estultos alargando
a satisfação, a visão, essa deriva rápida a entrar em cada coisa, é preciso dizê-lo;
outra vez fez estender o corpo, o seu e o da rua, prolongados, agregando – cada um – uma a uma
as contusões em uníssono, é preciso dizê-lo;
por várias e únicas ocasiões roubavam-se à surdina, por pura disposição, encorpando sempre
qualquer coisa atmosférica do ar de uma da outra, é preciso dizê-lo;
cada uma em qualquer motivação, quando se passeavam uma pela outra, rebuscavam-se, faltava sempre alguma coisa nas
suas entranhas, uma agonia ou uma falha por onde se tivesse encravado um sofrimento fraco demais para a convivência uma
da outra, é preciso dizê-lo;
várias e unas as muitas variações dos seus corpos sobrepondo-se, curvando-se na arquitectura reconstruída por uma e por
outra na outra, é preciso dizê-lo;

 

 

 

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Mapas de Espelho – Dizes, agora, só para ti

dizes, agora, só para ti

 

Ela detonava os olhos no mármore, dominada atrevia o seu coração a depositar-se nele até um dia perder:
a sua revolta e o mármore desaparecer sob a sua noite encastrada à revelia. O calcário absorvia tudo e todo o seu calvário se
lhe iluminava: todas as manhãs ia depositar a sua vida e recolher-se noutra
branca certeza que lhe revigorava a febre mansa, dizes, agora, só para ti.
Treinado no silêncio o seu coração embranquecia, e tu vagueavas por entre: essas moradas brancas silenciosas, sem saber
que treinavas o coração para a brancura e um dia terias essa febre sustendo-te
– sob os olhos –
outra infância, dizes, agora, só para ti.

 

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Mapas de Espelho – Como se se dissesse

como se se dissesse

 

A glória começa e acaba em cada corpo, a inocência alcança o limite da lâmina nos seus destroços,
como se se dissesse: moinho de velas em foice nas veias da vontade vã;
como se um capricho fosse: começar e acabar certo dentro de si centrado ou desorbitado no humano sem sinónimo.

 

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Mapas de Espelho – Dizes

dizes

 

Como se desfaz a respiração nos rostos: alongando ao ébano das máscaras o desperdício, dizes,
na evidência há (quando olhas) um ímpeto suicida, desferindo com emoção um dardo lanças
na derradeira verdade dos corpos a repetição, dizes;
e as máscaras confundem-se no fôlego das faces sôfregas, violentando a pulsão
os mortos concedem-te um verso, consagrando a tragédia óssea, e a carne teima prisioneira o improviso, não foge, dizes.

 

São lâminas magníficas os olhos e abrindo a boca duplicas todas as coisas doentes e no fastio,
que não cuidas, constróis uma jangada e cospes a fome, essa certa ignorância que atravessa os corpos e, dizes, quando
ninguém te escuta: são rápidas as mortalhas enfaixando nos olhos o incêndio.

 

Não adianta partir com gestos decepados ou fazer uma festa se não celebras as ravinas cansadas da raiva
e o depois é uma parábola de cinza, faz ulcerar, onde se traz vivo o coração,
a água ou o cinturão de lume – o que viola o corpo de desejos, dizes;
e o corpo é de cinza quando deseja o amor que faz: não abre girassóis nem conhece saindo do lodo
outro corpo: deixa-te preso aos músculos a respiração do moribundo
e os olhos crestam com esse abalo, dizes, supões atenuar a dor e sem poderes
perpetuas um intruso golpe, e, tal como a lua não volta a face,
um presente convulsivo abrevia a sua glória.

 

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Coro

“Mãos de mulheres, cheias de ternura,
cozinharam seus filhos,
que lhes servirão de alimento,
quando da ruína da filha do meu Povo.”
Bíblia. Livro das Lamentações, Job,

 

 
«O que é um homem bom?»
O que é um homem bom?, penso e pergunto-te
sem medo da palavra que não trova com o mundo,
de quando em vez, acosso-te: «O que é um homem bom?»
novamente assomo sem pudor de te perturbar ainda; vivo assim:
sem medo da tua pele tão à beira de mim, sem me retrair nos olhos
e fico de borco desejando despenhadeiro – tua voz – essa vida com sotaque vigilante
e se a minha palavra se abeirasse dos teus olhos
não sei se seria um lago, neve, iogurte dentro do prazo, a leve vida,
ou Elisa cantando: Tanzânia, T-a-n-z-â-n-i-a, T-a-n-z-â-n-i-a,/
T-a-n-z-â-n-i-a 
sem adivinhar um punhal
levando a morte ao seu corpo;
sei, talvez, que essa palavra seria sempre um objecto secundário,
um acessório de uma memória suja, demente ou ambição de vertigem
face de um fragmento rudimentar com que irias à procura
de qualquer coisa que te lembrasse
que não existe diz-que-diz-que na solidão
essa pele que absorve a fundo a noite
outra vez vem ter comigo, imploro!
acossa de relance – nos meus olhos – a tua mão, par
da mão que desossa com o cutelo os ossos, toca piano,
mão engatilhando, levando a extinção na sua força, fixando
os corpos no seu tempo “ A guerra foi à duas semanas”, diz o homem
com as duas mãos no volante O que é um homem bom?, vacilo
a mão de Sacha nas mãos
da mãe de Sacha; os olhos das mães crescendo
como a tensão nas mãos da mãe de Sacha
tanta face de lume! quando pensas noutro humano
tão impartilhável como é para mim o teu corpo de remendos,
depois vêm as palavras que seguram
o homem empoleirado, podando a preceito os ramos
de árvores russas, isso, as árvores eram russas,
as copas das árvores russas, a cidade ao fundo,
um enquadramento, um plano, tal como o plano do rosto de infância a ser enterreado
na improvisada vala comum,
a areia tapando o rosto infantil de olhos abertos,
os corpos amontoados na carrinha de caixa aberta,
mas esse relâmpago em câmara-lenta — a última imagem — os olhos abertos/
o bebé, e outras palavras juntam-se a ti: manga-curta manga-comprida
porco-preto porco-branco
« o porco-preto é mais difícil de conseguir, corre mais»
e os corpos arrojados até à porta da embaixada
as copas das árvores russas, os sacos entrançados, a rua, o gato, o branco
a cultura do açafrão, Maria, a campa da Maria, as mãos da Maria
separando as lágrimas do rosto, para se sentir mais na morte do filho,
o filho da Maria a galope do cavalo entrando pelo lago num dia de verão
russo, a aldeia russa da Maria, o marido russo da Maria e a nova mulher russa 
a Maria entrando terra adentro com as suas mãos respirando a força do sol,
a comoção do realizador com a morte e campa da Maria, com as palavras da filha de Maria,
a Maria fixando-se palavra viril – o que é um homem bom? pergunto-te agora? procuro-te
e ficas a pensar na possibilidade do nome das coisas, das tuas coisas quotidianas, tão a jeito e próximas da
tua indiferença,
« o porco-preto é mais difícil de conseguir, corre mais»

 

[continua]
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Respigar – O que foi que eu fiz ao dizer

No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
                               Lorca

 

O que foi que eu fiz ao dizer:

 

quando não souberes a escuridão
corre por entre o vinho e procura
as suas bagas e depois o sol
e depois sacia, só então, o apelo
do corpo que adormece;

 

traga toda a água que constrói
outra forma de queimar sublime
a repulsa do mundo no remorso;

 

só, depois, faz renascer o enternecimento,
a corda, as cordas que te acordaram
embrulhados pesadelos
na convulsão

 

obscurece os claros olhos que me guardas.

 

¡Oh, sí! Yo quiero! ¡Amor, amor! Dejadme.
Lorca

 

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Respigar – O que foi que eu fiz ao imprevisto

No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
                               Lorca

 

O que foi que eu fiz ao imprevisto

 

bailarina não existe
dança a embriaguez no terror da melodia

 

soldado não existe
enlouquece o deserto no território da pátria,

 

o eclipse, o vento, o meio-dia: as asas
saem feridas

 

bailarina não existes e nas tuas costas
a noite é para sempre:

 

intenso soldado
penhorando a lágrima
por este agora;

 

improvisa soldado o imprevisto
em bala,
nos meus lábios desembaraço
a sepultura do teu corpo

 

improvisa bailarina o imprevisto
embala,
no elíptico peso de brilho e treva
o coração decanta isto e aquilo

 

bailarina que eu seja
no palco o simulacro
o passo, as pálpebras do soldado

 

bailarina fecunda o soldado
que traz a paz deslumbrada
oh! soldado ferido
a bailarina não existe

 

só, dança na minha boca
a dor que não existe
e o imprevisto prazo
contrafeito do ritual orgânico

 

traz aberto o lagar onde banhas
as tuas feridas sempre abertas
nas vastas dimensões dos teus olhos

 

– limpos quando caiem –

 

sempre num lado escuro
vencendo, bruscamente,
imprevistos solos

 

agradecendo, retrai o medo,
esse que consentes
escurecido no verso que abandonas:

 

à beira do crepúsculo de todas as mortes

 

antecipa a brutalidade
que desprendes nos lábios,
os apavorados humanamente

 

e liga à divisão das terras o interno
espaço medrando o cessar,
o negro tempo

 

multiplica fábula.

 

[Continua]
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Respigar – O que foi que eu fiz noite

No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
                               Lorca

 

O que foi que eu fiz noite

 

cobarde ou funâmbulo equilibra
óbvias parábolas face à flor de carne
abrindo morte, e entrega à sombra
das suas pétalas a tenra sede
até ao travo amargo da sua glória,

 

e mostra aberta cada ferida secando

 

sob o sol soletra:
só tu sobrevives à solene solitude,
dentro do golpe – aberto e limpo –
só tu saberás o poder;

 

e vence em cada nome o perfil
da sombra que te persegue
familiarmente quando desejas
o centro das searas prosperando
violentos animais ou continentes
onde emparedas a tua fome:

 

a que desejas devolver
aos escolhos da solidão

 

desdobra nas lágrimas – as que sobraram –
os guias siderais da vocação limpa
voando a baixo do limite das águas,

 

e reinventa outra ilha no som baixo,
próximo e silencioso,
contra a singular paleta onde te ocultas:

 

outra vez, diz:
agora, aqui, vais ter o vencido
amor da terra, humanamente, observa:
anoitece crisálida a tremenda igualdade,
o sopro, os passos, a lama do tempo sustendo
como vampiros reais jogos de infância
maltratada, agora, aqui, outra vez, só a carne
ou o contínuo sangue insinua a tremenda igualdade,
a incondicionada infâmia ou se preferires
a noite eterna fecha-se fustigada pelo temor
agora, só aqui, outrora, matas tanto como agora
sob a unânime lâmina inconvencional da luz
 
marejando os olhos: justo, justo, era voltamos
todos outra vez, agora, restos de outrora

 

[Continua]
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